sábado, 4 de agosto de 2018

As ferramentas de leitura


“A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de  ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. [...]
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaço, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; ás águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo-esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. [...]
A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.

Paulo Freire
 A importância do ato de ler. 29a. ed. São Paulo: Cortez, 1994, p.12-15.




Ao ler este trecho da obra de Paulo Freire, me remeti automaticamente à minha infância. À sombra da goiabeira do pátio da minha casa eu lia meu mundo até então sem letras: as minhocas na terra, as formigas no chão, as folhas nas panelinhas de plástico misturadas ao barro tornavam-se as comidas das bonecas, as coleções de pedras, as figurinhas de chiclete, ...

Eram as minhas ferramentas para ler o mundo. E eram muito eficazes.

Algum tempo depois ganhei novas ferramentas: as letras. Também eram mágicas, me engrandeciam. Eu podia escrever meu nome, os nomes dos meus pais, as palavras, ...

Mas jamais esqueci das minhas primeiras e mais sensíveis ferramentas de leitura.

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